Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio folheando velhas revistas na antessala e me escafedia antes de ser atendido. Na única ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo – tem uns seis meses –, quando ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso.
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Não quero uma dentadura em ouro com incrustações em rubis e esmeraldas –
esclareci –, só preciso tratar o canal.
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É esse o preço de um tratamento de canal!
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Tem certeza? O senhor não estará confundindo o meu canal com o do Panamá?
Adiei
o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas
a Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um
"pau-de-arara" ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de
tortura.
Desta
vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se
transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do
lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e
picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para
esquilo.
A
enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal-da-cruz, e
entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só
aparece depois do circo armado.
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Sente-se – disse ela, apontando para a cadeira.
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Sente-se a senhora – respondi com educada reverência –, ainda sou do tempo em
que os cavalheiros ofereciam seus lugares às damas.
Minhas
pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira.
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O senhor é o paciente!
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Eu?? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de
tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho.
O
dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como
adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me
acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis
ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou
reconforto. Foi logo ordenando:
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Abra a boca.
Tentei,
mas a boca não obedeceu aos meus comandos.
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Não vai doer nada!
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Todos dizem a mesma coisa – reagi. Não acredito mais em vocês!
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Abra a boca! – insistiu ele.
Abri
a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante
do sargento do batalhão.
Ele
enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho.
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Tá doendo?
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Urgh argh hogli hugli.
Os
dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico,
secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que
conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances,
gradações que vão além dos limites de um sim-não.
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A anestesia vai impedir a dor – disse ele, armado com uma seringa.
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E eu vou impedir a anestesia – respondi duro segurando firme no seu pulso.
Ele
fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso.
Ele apoiou o joelho no meu baixo ventre. Continuei resistindo, em posição
defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele
afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de
Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou a
poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele
voltou com a seringa.
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Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um – disse,
dando-lhe um tapa na mão.
A
seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois pra alcançá-la,
caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa.
Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes. A situação se invertera: eu
estava por cima.
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Agora sou eu quem dá as ordens – vociferei, rangendo os dentes. – Abra a boca!
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Mas... não há nada de errado com meus dentes.
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A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria
ficar de fora? Vamos, abra essa boca!
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Não, não, não. Por favor – implorou. Morro de medo de anestesia.
Era
o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver
continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a
seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo:
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Você não passa de um paciente!
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