Era uma garota culta. Notoriamente
culta. Poucos atrativos físicos, mas um cérebro de causar inveja. Uma boa
representante das mulheres inteligentes. Cursava o último ano de
artes. Nas horas vagas, ouvia Pachelbel, lia Sartre, contemplava Dali, consumia
Godard. Não simplesmente vivia. Estimulava-se. Exalava saber. Inspirava
criação. Criava inspiração.
E entre tanto inspirar, ele
transpirava paixão. Ele, perdidamente apaixonado pela “Garota Saber” que sequer
sabia de sua existência. Como ela, ele também não era dotado de atrativos
físicos. Diferentemente, era burro como uma porta. Se ao menos tivesse
estudado textos sobre mulheres…
Mas o amor consegue
ser destemidamente desbravador quando quer. Por isso, ele estudou tanto quanto
pôde todas as preferências dela, seus gostos. Demasiada informação. Repetição.
Associação. Recapitulação. Noites e noites em claro.
Mas, ao menos, a
recompensa lhe parecia perfeita e eterna.
Num barzinho
universitário, ela sozinha junto ao balcão. Ele respira fundo. Bem fundo.
Aproxima-se, um andar cautelosamente calculado. Senta-se, ao lado, fingindo
distração.
Ele, após pedir a
bebida, sem olhar para ela:
– Esse ambiente é
um tanto quanto claustrofóbico. Remete-me a Misery.
– Como?
– Digo: esse bar.
Claustrofóbico. Misery.
– Misery? – Ainda
reposicionando-se ante a abordagem do “estranho”.
– Uhum. Sir King.
– Ah – um “ah” de
quem compreende. Ótimo. Ponto positivo.
– Só faltava estar
nevando – brinca, nova referência ao livro.
– É. –
Desanimadoramente monossilábica.
E então faz
silêncio. Ele esperava um comentário convidativo, algo que fugisse às
interjeições desestimuladas. Nada bom. Mas o amor consegue ser tapadamente
persistente quando quer. Por isso, ele espera uma “deixa”.
A música ambiente,
algum jazz que ele não conhece (o que não é de surpreender), termina, deixando
uma aura de silêncio onde sussurros podem ser ouvidos. Ele suspira
profundamente. Arremata:
– Play it again,
Sam!
Ela sorri. Outro
ponto positivo.
– Também amo
Casablanca – ela.
– Assisti três
vezes.
– Três?
– Essa semana.
– Puxa!
– Sabe como é?!? Um
fã inveterado de Humphrey Bogart.
– Eu nem tanto. – E
faz silêncio.
Ela discorda. Ponto
negativo. E ainda por cima, o silêncio. Ele precisa continuar o assunto que
conseguiu arrancar-lhe um sorriso. Mas falar o quê? Nunca assistira Casablanca
em toda sua vida. E não conseguia se lembrar dos detalhes do filme que havia estudado,
em alguma revista. Pouco importa. Continue. Continue.
– Pobre Scarlett
O´Hara – arrisca.
– Como? – Ela ri. –
Scarlett O´Hara em Casablanca?
Excesso de informação. Dados
cruzados. Reorganize. Reorganize. Scarlett O´Hara. Nunca mais sentirei fome em
minha vida. “Minha Vida de Cachorro”? Não.
Tente se lembrar das associações. Scarlett. Fome. Sem comida. Sem, porque
alguém levou. Comida que o vento levou. Aham, é isso!!!
Pontos de suor
aflorando na testa, apressando-se em ressalvar:
– Refiro-me à
sessão de logo mais. E o Vento Levou… quarta vez essa semana. Só de lembrar o
que a pobre Scarlett vai passar, fico emocionado.
– Sério? Costuma
chorar nos filmes?
– Até em Chaplin
Marx.
– Quem?
Dados cruzados.
Simplifique. Simplifique.
– Hãã… Chaplin, o
vagabundo.
– Ah, sim. Ele
tempera as piadas com emotividade. Consegue emostar as lágrimas.
– Concordo. –
Deixaria a palavra “emostar” para o próximo encontro com o Aurélio. – Mas nada
que um pouco de Mercury Rev após não resolva.
– Hum… Boa pedida.
Mas quer uma sugestão: prefira Smiths. É mais simbiôntico.
Simbiôntico?
Biôntico. Biônico. Olho biônico. Eletrônica.
– Sim, um som
eletrônico é uma ótima sugestão.
– Smiths,
eletrônico?
– Hãã… – Mais suor. Reorganize.
Reorganize. Que inferno é esse tal de Smiths? Seria Will Smith??? Arrisque. – É
que o rap tem algo de eletrônico.
– Rap?? The Smiths é
rock.
– Rock? Sim. Foi o
que eu disse. RAP. “Rock to Alternative People”. Um movimento musical ocorrido
nos guetos londrinos, iniciado nos anos noventa.
– Smiths nos anos
noventa? – rindo.
Anta. Por que não
colocou ponto final depois de “londrinos”? Agora se vira.
– Hãã… bem… É que
talvez você não tenha ouvido a demo que lançaram na década de noventa, antes de
estourarem nos anos dois mil.
– Anos dois mil? –
quase gargalhando.
Ele pigarreia.
Demasiadamente embaraçado. Quase entregue. Quase… Mas o amor consegue ser
insensivelmente cara-de-pau quando quer.
– Me desculpe.
Estou um pouco confuso. Qualquer um ficaria após contemplar Rembrandt por duas
horas seguidas.
Surpresa:
– Você gosta de
Rembrandt? Não acredito! Eu amo Rembrandt. Amo, amo, amo. Me diga: qual seu
quadro preferido?
Quadro preferido? E agora? Acesso ao
banco de dados mental. Qual era o nome daquela coisa cheia de rabiscos? “La Gioconda”? Não. “Peloton”? Não, esse
é um disco do Delgados. “Sagrada Família”?
Melhor não arriscar. Cruzamento de informação. Miscelânea. Mistura indigesta. E
agora?
Ele, evasivo:
– Prefiro aquela
fase após ele cortar a própria orelha.
– Mas quem cortou a
orelha foi Van Gogh.
– É… Então… Pra ser
bem sincero, estou começando agora a apreciar os pintores italianos.
– Italiano? – Rindo
de novo. – Rembrandt era holandês.
– Era? Bem, isso
era o que se acreditava no século 15…
– Mas Rembrandt
viveu no século 17.
– CHEEEEEGA!!! – grita.
Ele se levanta, furioso, e retira-se do bar sem dizer mais uma palavra
sequer. Das aulas com a Garota Saber, aprendeu uma importante lição: mulheres
inteligentes são complicadas demais.
E nessas horas, nem o amor..
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